quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

O Alegre inferno

Excelente artigo de opiinião do Jornalista Miguel Gaspar no Público de dia 16 (3ª feira)!!!

O alegre inferno
Miguel Gaspar - 2008-12-16


Manuel Alegre disse logo ao que vinha, no domingo, quando começou o seu discurso no Fórum das Esquerdas avisando que o Inferno espera os que não seguirem os seus passos e assumirem a "coragem" de "romper tabus" e participem numa reconfiguração da esquerda que até poderá ir a votos - isto para resumir apressadamente o essencial do discurso do vice-presidente na Assembleia da República na Aula Magna.
A oportunidade é tentadora: no meio do descontentamento geral, muitos eleitores socialistas estão entre os mais frustrados com o Governo Sócrates. A crise global abre espaço de manobra: é certamente um tempo adequado para rever premissas políticas e pensar mais longe.Manuel Alegre disse logo ao que vinha, no domingo, quando começou o seu discurso no Fórum das Esquerdas avisando que o Inferno espera os que não seguirem os seus passos e assumirem a "coragem" de "romper tabus" e participem numa reconfiguração da esquerda que até poderá ir a votos - isto para resumir apressadamente o essencial do discurso do vice-presidente na Assembleia da República na Aula Magna.
A oportunidade é tentadora: no meio do descontentamento geral, muitos eleitores socialistas estão entre os mais frustrados com o Governo Sócrates. A crise global abre espaço de manobra: é certamente um tempo adequado para rever premissas políticas e pensar mais longe. Mas nada disso transforma em realidade o que não é real. Como a criação de um novo partido à esquerda, por exemplo. O tempo disso acontecer está pelo menos distante - embora a presença de Carvalho da Silva no fórum (a tempo parcial, já que não foi ao encerramento) tenha aumentado um pouco a abrangência de um leque cujo núcleo duro é formado pelo Bloco de Esquerda e pelos apoiantes de Manuel Alegre.
Criar pontes é sempre belo, mas a expectativa do discurso de domingo foi muito para além disso. Manuel Alegre quis anunciar uma refundação política da esquerda portuguesa. Ora, os primeiros que ficariam a perder com um novo partido seriam os bloquistas, que acabariam por se diluir e desaparecer numa grande frente "alegrista". Não há espaço para a criação de um novo partido à esquerda do PS porque esse espaço está ocupado. E Alegre nem sequer disse que vai deixar o seu partido.
O antigo candidato presidencial não vale necessariamente um milhão de votos. Teve esse valor num contexto específico e as próximas legislativas em nada serão semelhantes às presidenciais. Onde esse milhão de votos volta a ser um activo importante é, precisamente, na próxima eleição para Belém. E o frentismo que não faz sentido em termos partidários - mesmo depois da Aula Magna - continua a fazer todo o sentido em termos presidenciais.
A vida não está a correr suficientemente bem a Cavaco para pensar numa reeleição automática. Aliás, o espectro de uma candidatura forte de Alegre a Belém não deixa de ser uma arma forte que José Sócrates pode continuar a apontar ao Presidente da República em exercício. E para ter uma forte hipótese de ganhar umas presidenciais, Alegre só precisaria de evitar uma reeleição de Cavaco Silva à primeira volta.
Mas há aqui um problema de tempo. O timing da Aula Magna é bom no plano das legislativas, mas prematuro no das presidenciais. E Alegre não se poderá demarcar desse discurso e do clima de urgência que criou. A sua candidatura a Belém passa a estar ligada ao combate político das legislativas e isso não facilita as coisas. Vai ser um ano político cheio de ruído e pode ser que Alegre tenha apostado demasiado alto demasiado cedo.

Não quero ignorar a dimensão programática do fórum, que é importante para o futuro desta história. Os serviços públicos são um tema aglutinador, mas não garantem um programa moderno. Repensar o papel do Estado é sem dúvida a questão central neste momento. Mas isso passa pela resposta a duas perguntas que Alegre não formulou. Uma é velha: como é que se financia o Estado? A outra nem por isso: que modelo de desenvolvimento deve ser adoptado para superar a crise que é económica, ambiental e energética?
Eu sei que os poetas não têm que entender de economia mas, para mim, que ainda sei menos de contas do que de poesia, uma saída à crise que não responda a estas perguntas é mais do mesmo. Se o inferno é o mundo que vem aí no próximo ano, um pouco mais de retórica não chega para ir à procura das respostas certas. Jornalista (miguel.gaspar@publico.pt)

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