quinta-feira, 14 de maio de 2009

Crónica do reino designado Onde o Que Não Pode Ser Já É - Helena Matos (Público)


Crónica do reino designado Onde o Que Não Pode Ser Já É

Os portugueses em 1509 chegaram a Sumatra. 500 anos depois, aportámos ao Reino Onde o Que Não Pode Ser Já É

Saiba Vossa Majestade que a terra é formosa mas habitada por uma gente muito bizarra. Para eles, nada é como parece ser. A palavra alegado, que repetem a todo o momento, tem para este povo as funções que, noutros reinos, cumpre o Deus me perdoe. Assim, se um homem é roubado, dizem que se trata da alegada vítima de um alegado roubo que eles preferem chamar explosão de insatisfação social. Os criminosos são alegados suspeitos, alegados investigados ou uma mui misteriosa cousa que dá pelo nome de arguido. E de alegado em alegado se enredam até que as vítimas passam a alegados culpados, os alegados culpados parecem tornar-se alegadas vítimas e assim sucessivamente prosseguem até nada se perceber e o povo ficar completamente confundido como se tivesse caído numa nova Babilónia. Se Deus Nosso Senhor fizer a bendita mercê de me levar de novo à Vossa presença, desta particular matéria dos alegados Vos darei conta narrando o espantoso caso aqui sucedido numa casa a que sem grande fundamento chamam Pia. Mas por ora e até porque a tal Casa Pia é cousa que assim escrita não se acredita, continuarei a dar-Vos novas do país e suas gentes tal como me incumbistes. Do muito que neste reino tenho perguntado posso afirmar que o seu viver nunca foi de muito acerto pois há séculos que se obstinam em acreditar que doutras partes do mundo lhes virão as riquezas que aqui não produzem mas gastam. Daí dividirem os tempos passados em arcas. Tiveram as arcas da Índia, do Brasil e da Europa. Tudo isso acabou. O pior é que ao pouco tino desta gente se soma agora uma espécie de desmoralização, pois, tal como os moços que vão servir em casa de ladrões e acabam eles mesmos na quadrilha, esta gentinha enfiou-se por um caminho onde todos os dias aceita como bem aquilo que na véspera amaldiçoava. Dos cartórios desaparecem documentos de escrituras e ninguém diz nada. Os mestres passam diplomas ao Domingo, dia de Nosso Senhor, e o mais que acontece é ouvirem-se anedotas até porque se poucos acreditam na palavra dos alunos menos ainda são os que acreditam na seriedade dos professores. E até nomes como Cova da Beira, Vale da Rosa ou Estuário do Tejo, apesar da vocação milagreira do país, não indicam quaisquer rotas de aparições divinas mas sim a aparição de humanas obras que ninguém consegue entender como podem ter sido autorizadas daquela maneira. O povo ora vive para enganar ora para sustentar o seu Estado que cada ano gasta mais do que no anterior. Engana-se Vossa Majestade se pensar que quem engana o Estado são os de pior condição. Neste reino, quem mais e melhor engana o Estado é quem o governa, mas aqui não se deve falar de enganos porque nesta terra ter poder é sinónimo de fazer leis cuja interpretação é sempre dúbia.Assim aqueles a que aqui chamam deputados mas não passam de peões bem mandados, ao mesmo tempo que aprovaram leis para vasculhar os dinheiros de cada cidadão, decidiram também que os partidos podiam receber mais malas com dinheiro sem explicar donde lhes vem tal fortuna. A não ser que nesta terra desatinada mas onde se come bem todos resolvam acreditar que se ganham milhares vendendo carne grelhada em arraiais de Verão, tal lei é mais uma estultícia de quem sabe que Deus põe, o legislador dispõe e o povo cumpre, paga e cala.Não sei como explicar a Vossa Majestade este paradoxo mas ponha Vossa Majestade na Sua ideia o seguinte: há quem governe impondo uma coisa que se aplica inexoravelmente a todos os outros menos a si mesmo. Assim o governo deste reino presume dos licenciamentos. Para tudo tem de existir um licenciamento. Creio que só para respirar ainda não têm licenciamento mas ainda lá chegarão pois se a falta de dinheiro do Estado é muita, o engenho destes governantes para inventar taxas ainda é maior. Pois acredite Vossa Majestade que todos os dias se sabe que os mesmos que impõem os tais licenciamentos concedem a uns quantos o privilégio de não os cumprir. No início, tal cousa ainda causava perguntas, agora já não e creio que o desígnio de cada um dos habitantes deste reino não é pôr fim a este estado de cousas mas sim conseguir também para si esse tal artifício que permite a alguns ganhar a vida fazendo leis que depois não têm de cumprir. Que Vossa Majestade me perdoe que fale tão desassombradamente mas um poder sem vergonha faz perder a vergonha a gente que se dizia honrada. Contudo o que causa mais espanto entre os recém-chegados a este reino já não é tanto o que sucede - e que a cada dia é mais pasmoso - mas sim a desfaçatez dos envolvidos. Para quem, como eu, vive no meio deles não há lugar para espanto pois descobri que os povos tudo suportam quando quem os governa faz deles seus cúmplices.Eu não tenho ilusões e bem sei que vozes invejosas as há infelizmente em todo o lado e também nesse nosso bendito reino e não faltará quem insista junto de Vossa Majestade dizendo que só à minha falta de persistência ou perda de tino se podem assacar as informações que abaixo envio sobre aquilo a que aqui se chama justiça e investigação. É certo que já gastei largos cabedais desse nosso reino tentando perceber o que se designa nesta terra por casos mas até agora apenas posso dizer a Vossa Majestade que um caso é um crime em que os criminosos têm meios para contratar advogados e efectuar pressões para que o crime passe a caso e em seguida seja esquecido. Ou se de todo em todo se chegar a julgamento que apenas se julgue quem baste para que tudo fique na mesma. Creio até que o melhor será embarcarmos alguns indígenas destas terras e levá-los para o nosso reino onde não só se civilizariam como poderiam relatar a Vossa Majestade muitas das estranhezas que por aqui acontecem. E certamente dariam conta dos muitos trabalhos que aqui tenho padecido e muito contribuiriam para que Deus Nosso Senhor iluminasse Vossa Majestade, fazendo-o desistir de mandar mais gente desse nosso reino a estas terras pois para sofrimentos já bastam os meus.Todos os dias aguardo pela Vossa carta que me fará de novo regressar a casa donde jamais sairei e levarei se Vossa Majestade assim o entender, o resto dos meus dias contando às crianças, pois os adultos não me acreditarão, histórias do Reino Onde o Que Não Pode Ser Já É. Jornalista

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