terça-feira, 4 de novembro de 2008

Alto risco e lucro imediato? Tão depressa nunca mais...

Excelente artigo no "Público" de hoje...
Alto risco e lucro imediato? Tão depressa nunca mais

Ana Rute Silva


A corrida ao dinheiro fácil beliscou a imagem de solidez associada à banca.
Numa altura em que a crise internacional põe a nu a gestão duvidosa do Banco Português de Negócios, uma certeza emerge: depois da tempestade, nada será
como dantes. A começar pelos salários de quem gere as instituições financeiras


Richard Fuld tem a boca seca. Ajeita o microfone repetidamente, enquanto segura as folhas de um discurso preparado. "Sinto-me muito mal pelo que aconteceu", diz, ao justificar perante o Congresso norte-americano a ruidosa falência do banco de investimento Lehman Brothers, onde assumia o cargo de director executivo. "Fizemos tudo o que podíamos para proteger a empresa", continua.
O gestor norte-americano, que em Abril afirmava publicamente que o pior da crise já tinha passado, é agora apontado como incompetente, personificando a imagem do banqueiro rico e ganancioso. Ao mesmo tempo que Fuld recebia bónus e compensações - entre 2000 e 2007 terá ganho 350 milhões de dólares, mais de 273 milhões de euros - os problemas do subprime acumulavam-se, com as famílias a deixarem de pagar as dívidas contraídas com arriscados créditos à habitação.
A instabilidade dos mercados derrubou empresas sólidas e pôs a nu práticas de gestão duvidosa. O Banco Português de Negócios sucumbiu depois de actos de legalidade pouco claros e um buraco de, pelo menos, 700 milhões de euros. A nacionalização está em curso, ao mesmo tempo que se calculam eventuais indemnizações a pagar aos accionistas. José de Oliveira Costa, presidente do conselho de administração entre 1998 e Fevereiro deste ano e ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Cavaco Silva, é o rosto sobre o qual recaem todas as suspeitas.
Sabe-se, hoje, que os cinco maiores bancos de Wall Street (que estão falidos, prestes a transformar-se em bancos comerciais ou em processo de fusão com outras empresas) pagaram mais de 2,3 mil milhões de euros aos seus executivos de topo nos últimos cinco anos. O Lehman Brothers, com 158 anos de existência e 25 mil trabalhadores, vai ficar conhecido pelas piores razões. Protagonizou a maior falência da história, com dívidas que ascendem aos 613 mil milhões de dólares (478,7 mil milhões de euros).
Instituições bancárias, directores executivos e gestores são olhados com desconfiança. Criticam-se as remunerações elevadas e o objectivo imposto pelos accionistas de chegar rapidamente ao lucro. Os banqueiros abandonam os cargos, à medida que em todas as economias do mundo se anunciam perdas financeiras. Charles Milhard, chairman da Caisse d'Epargne, o terceiro maior grupo bancário de França, assumiu "inteira responsabilidade" pelas quebras do terceiro trimestre, que atingiram 600 milhões de euros. A culpa, afirmou, foi da "volatilidade excepcional dos mercados" e da "violação das instruções" dadas pelo conselho de administração.
Os erros pagam-se, literalmente, caro. Muitos dos executivos que deixaram cair bancos credíveis regressam a casa com a conta recheada. Mas também há quem renuncie ao bónus anual por "solidariedade" nestes tempos de crise financeira, como o presidente do Deutsche Bank, Josef Ackermann. Sem pedidos formais de desculpa, o sector recusa-se a ser o único responsável pela instabilidade. "Não há dúvida de que cometemos erros. Mas isso não deveria ser suficiente para dar má reputação a toda uma classe profissional", lamentou ao Financial Times Klaus-Peter Müller, director da associação de bancos alemã. Uma coisa parece certa: depois da crise nada será como dantes.
"Não precisamos de outros banqueiros. O que devemos é alinhar os interesses das empresas e dos bancos com os da sociedade", diz João Ermida, antigo responsável global de Tesouraria e Mercados Financeiros do Banco Santander, que trocou a carreira na alta finança por projectos de cariz social. O colapso dos mercados estalou com a "exigência dos resultados impossíveis". Dinheiro gera dinheiro e "rapidamente se perde a humanidade", nota o autor do livro Verdade, Humanidade e Solidariedade, O Método dos Executivos do Futuro.
João Ermida refere mesmo que a fórmula do curto prazo, do risco elevado e do lucro imediato morreu. "Não há capacidade no mundo para pedir aos funcionários das empresas para continuarem esta política. É preciso alinhar as expectativas dos funcionários com as dos accionistas, do conselho de administração, dos gestores. Não se pode estar numa guerra de pressão de resultados sem ter noção do que se está a pedir", defende.
A corrida ao dinheiro fácil beliscou a imagem de solidez associada à banca. Joga-se a reputação de uma classe profissional e, por isso, o novo perfil de banqueiro poderá incluir maior exigência ética. "Não se trata de uma crise de competências. Talvez voltemos ao gestor que tem preocupações sociais. Noto que há mais preocupação com os valores e a ética e talvez voltemos ao rigor e à imagem mais conservadora", observa Fernando Neves de Almeida, responsável da Boyden, empresa que recruta executivos de topo. José Gonçalo Maury, partner da consultora Egon Zehnder, que também selecciona e recruta quadros de topo, acrescenta que o actual cenário "vem alertar as pessoas para terem uma conduta ética profissional".
E o que pensará um banqueiro? Sem querer comentar as consequências da crise para a imagem da banca, Horácio Roque, presidente do Banif, garante que o perfil dos gestores não está em causa. "Vivemos dias que não são fáceis. Mas a crise vai passar. Este é um problema de todos e é um desafio para as instituições portuguesas. Acredito que vai haver mais aproximação aos clientes, às empresas e às famílias", assegura. Os novos gestores da banca, diz, por seu lado, o economista João César das Neves, vão ser parecidos com os anteriores, mas "mais experientes". "Uma crise deste tamanho dá sempre grandes lições."
Intervenção do Estado
A mudança mais visível será nos sistemas de remuneração. O primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, que declarou estar "furioso com o comportamento irresponsável dos banqueiros", foi o primeiro a declarar guerra aos altos salários praticados. O ordenado dos gestores inclui compensações variáveis - por exemplo, bónus, participação nos resultados ou opções sobre acções - e, segundo Paulo Machado, partner da Mercer, consultora de recursos humanos, chega a representar 60 por cento da remuneração. Está "absolutamente ligada aos resultados do negócio", explica. Com a intervenção do Estado, o cenário vai mudar.
Em Portugal, o Governo vai poder decidir sobre os salários e dividendos dos administradores e dos órgãos de fiscalização dos bancos que utilizarem a garantia de 20 mil milhões de euros e entrarem em incumprimento. Já se sabe que a Caixa Geral de Depósitos, o BCP, o BES, o BPI, o Santander Totta e o Banif estão disponíveis para recorrer a este sistema.
Na Alemanha, as empresas que aderirem ao plano de salvamento terão de limitar o ordenado dos gestores dos bancos a 500 mil euros por ano. Não serão pagos bónus nem dividendos. "[Haverá mudanças]. Não só neste sector, mas em todos os que tenham a ver com políticas de compensação para executivos. A preocupação será alinhar estas políticas com a performance sustentável do negócio", aponta Paulo Machado.
Fernando Neves de Almeida concorda. "O pacote salarial deve mudar. Queremos organizações que perdurem, que fiquem para os nossos filhos. É assustador ver desaparecer instituições de peso. E ainda mais paradoxal é serem os políticos, mal pagos, a salvá-las", ironiza.
Criticando a "tentação populista" do Governo de tentar regulamentar os mecanismos de remuneração de empresas privadas, o economista João César das Neves não tem dúvidas de que houve excessos, "abusos escandalosos, com alta gravidade ética". Mas a "culpa" está no topo da hierarquia. "[Os altos ordenados] foram permitidos pelos accionistas e custaram-lhes muito caro. É a eles que compete emendar estes terríveis erros. Se pusermos ministros a decidir este aspecto de gestão empresarial, certamente que sairá coisa bastante pior", critica.
O comum contribuinte pode não conhecer a gíria financeira, mas é a confiança que deposita nas instituições financeiras que faz o mundo girar. E foi a perda deste activo, diz César das Neves, que provocou a queda de bancos sólidos. Para voltar a conquistar clientes, avizinha-se o regresso dos balcões de mármore, da austeridade das dependências bancárias, distantes do consumidor? "Isso hoje não chega. As empresas e pessoas deste tempo querem solidez, mas também dinamismo. Quando a intervenção política conseguir acalmar o clima, penso que a confiança volta às instituições sérias e prudentes", tranquiliza o professor do Instituto Superior de Economia e Gestão.
Rui Trigo, presidente da Brandia Central, empresa de gestão de marcas, lembra que, neste contexto, os bancos vão querer acentuar aspectos como a história da própria instituição e a solidez. O novo mantra bem pode ser: abaixo o gestor da banca interessado no lucro rápido, viva o gestor da banca incentivado a fazer dinheiro a longo prazo

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