terça-feira, 11 de novembro de 2008

Os dias de hoje...


Consumo Compro, logo existo
O altruísmo é um sentimento nobre, mas raro. É que a maioria de nós gosta de dar, mas a si próprio e não aos outros. O consumo é o segundo oxigénio desta atmosfera global. Com a crise a bater à porta, será que vem aí uma mudança de paradigma?


IR ÀS COMPRAS É HOJE COMO UMA ESPÉCIE DE TERAPIA DE COMPENSAÇÃO. MUITOS VIVEM PARA CONSUMIR E, CONSUMINDO, SENTEM-SE BEM E ESQUECEM OS PROBLEMAS E AS FRUSTRAÇÕES.

«Chiclete prova, chiclete mastiga, chiclete deita fora, chiclete sem demora», os Táxi retrataram-na na perfeição. Viviam-se os borbulhantes anos 80: a «sociedade de consumo imediato» estava aí e era para todos. À data não havia «shoppings» como cogumelos, ignorava-se o significado das palavras «gadgets» ou lojas «gourmet». Os cartões de fidelização das marcas e o crédito por telefone eram ilustres desconhecidos. O objecto foi-se actualizando, os meios de o obter acompanharam a sofisticação. Hoje, coexistem sentimentos extremos: usam-se desodorizantes mas apela-se à protecção da camada de ozono, lamentam-se as deslocalizações mas procuram-se, freneticamente, preços mais baixos, defende-se o comércio tradicional mas enchem-se os centros comerciais ao fim-de-semana. «Homo consumericus» ou turboconsumidor são palavrões inventados pelos filósofos actuais para retratar homens e mulheres que, amiúde, compram para compensar as asperezas do dia-a-dia, as frustrações profissionais e afectivas. Será doentio? Respirem de alívio, o psicólogo Manuel Sommer garante que não. Há anos a escutar quem se deita no divã por comprar até perder tudo menos o nome na lista negra do Banco de Portugal, o doutor Sommer, e a sua tarimba na matéria, pacifica-nos a alma: «Irmos às compras é, de facto, uma compensação, mas é normal recorrer a compensações através de um certo consumismo, isso faz parte das sociedades capitalistas actuais». Se essa compensação se tornar em algo obsessivo, diário, se a capacidade de autocontrolo falha e nunca basta de compras, aí sim, a fronteira da normalidade foi ultrapassada.

Confesso apaixonado por comprar roupas, a sirene ecoa na cabeça de Manuel Luís Goucha, quando quem lhe trata dos dinheiros manda o recado: «Goucha é demais!» É certo e sabido que pisou o risco e, então, pára. «Sou um consumidor pouco cerebral e desequilibrado. Confesso!», diz à Única. Antes, conta, desculpabilizava-se dizendo que tinha que se apresentar bem porque trabalhava em televisão, mas admite que se perde com roupa. «Gosto de roupa, de tecidos, de cores, de texturas, enfim, tudo se conjuga para que eu me descontrole e compre e compre, uma vez seduzido por esta ou aquela peça». Os trapos são parte integrante do seu bem-estar, género de armadura para sair de casa e, com segurança, enfrentar o dia. Recentemente, deu a volta ao seu roupeiro, quatro quartos da sua casa em Fontanelas transformados em «closet», e contou mais de 300 gravatas. Muitos fatos Armani e Versace que vestiu uma ou duas vezes. Não aceita patrocínios porque quer comprar onde, quando e o que quer. Compra no estrangeiro, porque viajar em grande estilo é outra das suas perdições, mas é, há muito, cliente da portuense Vicri, que veste Robin Williams, Bill Clinton ou Tony Blair.
«Estou em maré de confissões. Ao separar roupa, que tenciono usar numa venda de Natal no meu programa, escandalizei-me por pôr de parte 110 gravatas, continuando com muitas mais ainda para usar.» Da última vez que foi à fábrica da Vicri, prerrogativa dos bons clientes, o sr. Freitas nem queria acreditar, nem uma gravata levou, há anos que as levava às duas dezenas. «Dei a volta aos meus armários e achei obsceno.» Optimista por natureza e nunca descontrolado com os dinheiros, Goucha tem sido imune às vozes da crise, mas o contexto actual e a responsabilidade sobre a vida de 28 pessoas (empregados do seu restaurante) fê-lo refrear o seu ímpeto consumista. Vai menos a Paris passar o fim-de-semana. «Mas há consumos de que não abdico, como o dos livros, dos discos e dos espectáculos. Sem eles não seria feliz!» Curiosamente, dizem os estudiosos da matéria, os consumos culturais dão, à maioria das pessoas, menor compensação do que os teoricamente despojados de sentido.

Será fácil definir o que é essencial? Será um cotonete uma necessidade? Questionou-se imensas vezes a norte-americana Judith Levine, autora do livro A Mim não me Enganam. Um Ano sem ir às Compras que - como o título indica - ficou um ano sem adquirir nada de supérfluo. Resultado: poupou oito mil dólares, no país do consumo por excelência. Certo é, porém, que hoje não é possível viver só com o essencial. Viver sem cinema, restaurantes, sem uma nova mala Kate Spade, fez Judith sentir-se fora do contexto: «A minha identidade e a minha vida social foram muito afectadas por estar fora do mercado do consumo».
A era dos consumidores camaleónicos. O bichinho muda de cor em função da base das suas patas. Em ramo verde, verde é, na terra confunde-se no seu castanho. O consumidor do século XXI é, precisamente, assim, camaleónico. Há anos entranhado nestas coisas do consumo, com vários livros publicados, Beja Santos, assessor principal da Direcção Geral do Consumidor, troca esta ideia por miúdos: ser camaleónico é, por exemplo, ter uma mala Louis Vuitton e comprar no Minipreço, ter uma casa com o requinte dos móveis antigos e por lá um candeeiro da IKEA. «Marca-se uma atitude estética mas também prática porque o candeeiro novo dá uma luz muito melhor do que o candeeiro dos anos 20 que é só bonito.Camaleónico, veloz e sem fronteiras serão os adjectivos que melhor qualificam o consumo actual. 30 anos depois da alvorada da sociedade de consumo (por cá), compra-se pela net o inglês Infacol, o milagreiro anticólicas do bebé que as mamãs apregoam nos «chats». O velhinho «black trinitron» entrega-se na compra do LCD. Viaja-se hoje para Varadero e só se começa a pagar, em suaves prestações, quando as férias grandes acabarem. Um reino onde, muitas vezes, quem governa é o poder do impulso, poder que as empresas conhecem bem. A organização dos hipermercados é, há muito, feita a pensar no impulso - supérfluos à entrada, essenciais ao fundo. Também os «gadgets» do presente motivaram novos espaços de compra por impulso. A pensar nos viajantes que se esqueceram de carregar com música o iPod ou o leitor de MP3 - e estão dispostos a pagar para matar o tédio da viagem - a EMI vai colocar nos aeroportos quiosques de «downloads» de música dos artistas da casa: Coldplay, Lily Allen, The Kooks e Kylie.
Espectador atento destas transformações, Beja Santos, também professor universitário, diz que hoje «toda a gente triunfa no consumo que se transformou num segundo oxigénio, numa religião». Mas será que a velha ideia de alienação ainda cola? Walter Rodrigues, sociólogo do ISCTE, acha que não. «A ideia de um consumidor ‘manipulado ou alienado pela sociedade de consumo’ é uma ideia do passado. Os consumidores do século XXI são mais conscientes e responsáveis». Talvez, mas foi a falta de ambas (consciência e responsabilidade) que levou António e a mulher a bater à porta da Deco com um dossiê cheio de folhas com números a vermelho.
Consumir até cair. Cursou Direito e é, há muito, jurista na Deco. Às terças e quintas-feiras é, também, psicóloga, quando aponta caminhos, padre, quando ouve em segredo de confissão a história da vergonha (incontável ao vizinho ou ao colega); e amiga, quando enxuga as lágrimas fáceis do desespero. Os olhos das vítimas do consumo irreflectido, trazem a piscar as letras SOS. Nos minutos que se seguem à chegada ao gabinete dos sobreendividados, Natália Nunes é a estrela do Norte desta gente ansiosa por uma solução que apague os casos negros da sua folha de vida. O «cocktail» subida da Euribor, sete créditos ao consumo, mais cartão de crédito e crédito à habitação - porque ser o dono da casa foi prática numa sociedade de consumo suportada pelo crédito fácil - explodiu, fatalmente, nas mãos deste casal com dois filhos, de oito e quatro anos. Na lista de credores contam-se Banif, GE Money, BPI, BES, Cofidis, Cetelem. Um rendimento mensal de 1530 euros para uma despesa de 1549 euros. E está tudo dito. Passavam tempo demais no centro comercial e os miúdos seguiram o exemplo dos pais - habituaram-se a comprar. «É um problema de cultura, da satisfação e do carinho, se precisamos estar num centro comercial no sábado à tarde, educando os nossos filhos a trabalhar para depois terem dinheiro para consumir, então é uma pena», é o que diz Beja Santos aos seus leitores e alunos.
Se pôr freio a esta hemorragia de créditos já era difícil a escalada das taxas de juro massacrou as muito débeis economias familiares. Para comprar móveis, viagens, telemóveis, electrodomésticos pediram os primeiros créditos, mas, em muitos casos, endividam-se agora junto das sociedades de crédito ao consumo, só para pagar a prestação da casa. O monstro cresce. «Falta de educação financeira, as pessoas não olham para as taxas de juro limitam-se a ver se conseguem pagar naquele momento numa frase o diagnóstico de quem lida com o desespero. Só à beira do precipício pedem ajuda.
Comprar para viver. Pedro Cansado Carvalho tem 20 anos. Vive e estuda em Lisboa e na altura de escolher o que compra é essencial identificar-se com a imagem jovem das marcas. Foi por isso que decidiu ser um Yorn, um tarifário da Vodafone desenhado a pensar nos Pedros. É pela compra de determinadas marcas e produtos que se referenciam estilos de vida, nomeadamente dos jovens. Não há quem se tenha apercebido melhor deste desígnio do que as empresas que os querem, ardentemente, como clientes. Grandes marcas criaram dentro de si como que segundas vias para quem não quer alinhar com o resto do rebanho. É assim que nasce a Yorn dentro da gigante Vodafone. Há outras marcas que, segundo Pedro, sabem chegar lá. Basta olhar para os seus irmãos e para os colegas de faculdade para perceber que Apple, Smart, Swatch, Billabong, Cooper são marcas que falam a mesma língua. Até aos 20 talvez um par de calças fosse mais importante, agora as mesadas vão para «gadgets». iPod e iPhone estão no topo da lista dos mais quentes.
Nesta grande casa global coabitam vários tipos de consumo. O de massas coexiste com consumos elitistas, de nicho, só para alguns segmentos. A comunicação da marca está, pois claro, sempre à altura do seu consumidor. Seria impensável a Porsche, marca de automóveis desportivos de luxo, fazer um «spot» publicitário para passar em «prime-time» nos canais generalistas. É assim que um utilitário chega ao seu público, nunca um Porsche. Nuno Carmo Costa, director de marketing da marca, explica tudo. Quando a marca lança um novo modelo convida os seus clientes a experimentá-lo em circuitos de competição. Foi assim com o 911. Pelo menos 109 mil euros cada. Venderam-se 103 unidades em 2007 (num total de 230 Porsches vendidos). Nas marcas de luxo a fidelização faz-se através de convites especiais para eventos «lifestyle» como o Torneio de Pólo Porsche. Oferecer «escapadelas de fim-de-semana» também faz parte dos miminhos. Uma comunicação especial para consumidores muito especiais: homens (dos 30 aos 70) com alto poder de compra. Antes não era hábito mas, agora, as senhoras já vão conduzindo o 911 do marido quem sabe para ir até à loja «gourmet» do El Corte Inglés e comprar uns mililitros de blingh2o, a água de luxo que vem em garrafas decoradas com cristais Swarovski. Passou por um processo de filtração especial com ozono e ultravioleta, mas é água.Os camaleónicos podem sempre investir estes 30 euros na garrafa e, depois, usá-la para ter água fresca no frigorífico. É brilharete garantidoA bling é uma raridade que só se encontra em lojas muito especiais e em hotéis e restaurantes daqueles que têm mais estrelas do que um céu de Verão.Para lá do poder de compra há um nicho ainda mais apertado: o do requinte absoluto. «Ir à loja da Hermès, é um caso radical, não há concessões, o altamente luxuoso paga-se muito caro porque é estatutário. Porém, muito poucos o podem fazer», comenta Beja Santos. Sair de lá com um lenço Hermès na cabeça a prender o cabelo, para não esvoaçar na viagem ao volante de um Jaguar ou um MG dos anos 30, é luxo mas é, também, requinte. A segmentação criou, igualmente, espaço para o chamado «affordable luxury», produtos com qualidade ao mesmo tempo acessíveis. É o caso das canetas Waterman e Sheaffer, luxos que se democratizaram porque as empresas passaram a fabricar modelos para todos os públicos. A Nespresso, que vende café em «boutiques», é, no entanto, o exemplo incontornável deste luxo ao alcançável, com um serviço tão personalizado que trata os seus consumidores como membros do clube.
Publicidade XXI. Neste novo mundo do consumo, pegou moda envolver os consumidores na promoção das marcas. Por cá, a 7Up deu a sete jovens portugueses a possibilidade de verem as suas caras numa edição especial. Não sem antes ganharem o brilho que só as celebridades têm. O estilista Dino Alves preparou-os para a sessão fotográfica. Têm, agora, o rosto estampado nas garrafas 7Up e Tomás Froes, director da MSTF Partners, eleita a melhor agência de publicidade de 2007 pelo clube de criativos, explica o porquê de casar os consumidores com a marca consumida. É apenas o fervilhante mundo da publicidade - desde o início o grande pilar da sociedade de consumo -, a responder à mudança de paradigma: da interrupção à colaboração. Se muitos continuam a consumir «media» de forma tradicional, o novo consumidor do século XXI lê as notícias do dia na Internet, agenda compromissos e gere a sua vida pelo PDA (ou telemóvel), faz juras de amor à namorada por SMS e flirta com outras no Second Life. Com a massificação da internet, telemóveis, «gadgets» de comunicação e entretenimento, a comunicação comercial está mais fragmentada e muitos destes consumidores tornaram-se em audiências nómadas. Envolvê-los na «co-criação das marcas, dos produtos e da comunicação» é o que se espera das agências e dos anunciantes, sendo certo que é já inconcebível um mundo sem publicidade que «se banalizou mas não perdeu importância», diz o sociólogo Walter Rodrigues.
«Depois deste consumismo desenfreado poderá o homem começar a extrair algum sentido à sua existência? Há possibilidade de mudar a sociedade de hiperconsumo ou só se parará perante um desastre ecológico ou económico?», perguntava o filósofo contemporâneo Gilles Lipovetsky. E terá esse desastre chegado agora? Há dias que o planeta vê, ouve, lê e tenta perceber que impacto terão na sua vida falências, injecções de capital, títulos tóxicos, planos SOS. A quente não há quem ouse lançar cartas e prever o futuro, mas é claro que o consumo se vai acanhar.Para Beja Santos, que há décadas dedica os seus livros à análise desta sociedade de consumo, é claro como a água que «as pessoas estão a perceber que esta é a factura». Não foi o «subprime» que levou a isto, foi uma sociedade que vende e compra a crédito, diz. «Agora há que reorganizá-lo e impedir o crédito impossível.» O consumo, no futuro, é previsível: «vai estar tudo nas escolhas». Fará, agora, o capitalismo outro «upgrade Walter Rodrigues, do ISCTE, demarca-se das visões «finalistas» do mundo e não lhe parece nada certeira a ideia de uma qualquer crise que prenuncie o fim do capitalismo de consumo. Ao longo da história a sua capacidade de reinvenção tem sido demonstrada.
TEXTO DE TERESA GENS

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