segunda-feira, 23 de março de 2009

O que aconteceu ali? - Pedro Mexia - Público

14 de Março de 1938, tinha Josef Fritzl três anos, os nazis entram na cidadezinha austríaca de Amstetten. São acolhidos apoteoticamente. A anexação era recebida como uma libertação. Segundo o jornalista Allan Hall (autor da biografia Monster, 2008), o pequeno Josef estava entre a multidão, agitando uma suástica de papel, enquanto o pai lhe explicava: "Vêm salvar-nos."
Setenta anos depois, em 2008, Fritzl confessou na cadeia: "Nasci na época nazi, quando havia controlo e respeito e autoridade. Suponho que conservei esses velhos valores ao longo da vida." Talvez possamos chamar a esses "velhos valores" outros nomes: opressão, submissão e terror. E isso não se apaga facilmente, como lembra Hall: "Durante a Segunda Guerra Mundial havia dois subcampos do campo de concentração Mauthasen-Gusen em Amstetten, parte de um complexo onde morreram entre 122.766 e 320.000 pessoas." O polícia que descobriu a infame cave de Fritzl "tinha visto fotos" desses campos, mas afinal "a guerra tinha acabado há 65 anos e ele nunca esperou ver de novo uma coisa daquelas durante o seu giro". "Coisas daquelas faziam parte da História. Não faziam? O que é que tinha acontecido ali?"
O que aconteceu ali? Josef Fritzl parecia um pacato pai de família, um engenheiro electrotécnico reformado e reservado. Hoje conhecemos o seu percurso: abandonado pelo pai, maltratado pela mãe, condenado e preso por violação em 1967, dava tareias de cinto aos seus filhos, visitava clubes de sexo sádico, fazia turismo sexual em Bangecoque, coleccionava livros sobre os jerarcas nazis. É uma dualidade comum em "monstros", mas talvez deva alguma coisa àquela "atmosfera maligna" que o escritor Thomas Bernhard denunciava com veemência: a atmosfera de uma Áustria vergada ao gene nazi, ao catolicismo autoritário e ao conformismo burguês.
O que aconteceu ali? Não percebemos, ninguém percebe, que um pai prenda uma filha numa cave. "Cave" é aliás uma expressão enganadora, porque do que se tratava era de um bunker, como aqueles que havia na guerra. No fim do nazismo, diz-se que havia em Berlim quatro metros de bunker por cada metro de edifícios. E foi esse ambiente que Fritzl recriou, um ambiente secreto de ordem, disciplina, obediência. Atrás de um armário na sua casa estava dissimulada uma porta maciça, e depois umas escadinhas davam para um horrível submundo: sete portas sucessivas, como num conto de Poe, um tecto baixo, corredores estreitos e divisões fétidas, sem janelas, com paredes à prova de som, uma sanita, uma kitchenette, umas camas.
Elisabeth Fritzl viveu nessa masmorra privada entre 28 de Agosto de 1984 e 27 de Abril de 2008. O pai violava-a desde os 11 anos e, quando na adolescência ela fugiu de casa, ele decidiu que era tempo de lhe ensinar os "velhos valores". Contou a toda a gente que Elisabeth se tinha envolvido com uma seita religiosa e tinha desaparecido, forjou uma carta, atraiu a filha para o bunker que andava a construir e manteve-a nesse inferno durante duas décadas e meia. Nos primeiros anos, ela tinha alucinações, gritava, caía no tédio mais insustentável. Depois, engravidou sete vezes do pai. Seis meninos sobreviveram, o sétimo morreu por falta de cuidados apropriados e foi incinerado por Fritzl, sempre fiel à sua mitologia.
A barbárie de Fritzl foi subterrânea. Mas como compreender a barbárie à superfície? Como perceber que sucessivas vistorias não tenham dado com o bunker? Que os vizinhos não tenham estranhado as obras secretas? Que as assistentes sociais tenham acreditado quando apareceram três bebés supostamente deixados à porta dos pais pela desaparecida Elisabeth? Como compreender a incompreensível credulidade de Rosemarie, a mulher de Josef, que ao que parece não sabia de nada? Allan Hall tem toda a razão quando diz: "A nação austríaca tinha finalmente que se confrontar com a sua natureza como sociedade. O caso de Amstetten acentuou o que parecem ser graves falhas na psique de um povo e nas suas estruturas sociais e judiciais, pois todas elas falharam com Elisabeth e os seus filhos, como tinham falhado com outra vítima de encarceramento subterrâneo em 1998 - Natasha Kampusch, a rapariga na cave que sofreu um tormento de oito anos e meio nas mãos do seu raptor." O castigo possível chegou anteontem. Josef Fritzl foi dado como culpado de homicídio por negligência, violação, incesto, coerção e escravatura, e condenado a prisão perpétua num estabelecimento psiquiátrico. Confrontado com um testemunho gravado da filha e com a sua aparição em tribunal, tinha confessado todos os crimes.
É que, se há um monstro nesta história, há também uma figura extraordinária, a estóica e determinada Elisabeth. Quando Elisabeth, com 42 anos, saiu finalmente do bunker para acompanhar o tratamento de uma das suas filhas, os médicos desconfiaram do estado lastimável da adolescente. Elisabeth aproveitou e contou tudo. Contou todos os abusos e violências. Mas também contou que tinha cuidado de seis crianças, que as tinha alimentado, vestido, que lhes tinha dado banho, que tinha brincado com elas e visto televisão com elas, que lhes ensinou gramática e matemática, que as educou e lhes transmitiu a sua fé. Quando os miúdos ainda cativos foram trazidos à luz do dia, o rapaz mais novo apontou para o céu e perguntou aos polícias: "É ali que Deus vive?" E aqueles polícias, que já tinham visto e ouvido tudo, choraram como crianças desoladas.

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