terça-feira, 23 de setembro de 2008

Saber não ocupa lugar... ou talvez sim!!!

Crónica deliciosa do Comendador Marques de Correia publicada no sábado passado no Expresso:


Coisas que eu teria preferido nunca ter aprendido na escola
Há quem diga que o saber não ocupa lugar. Mas eu estou convencido de que ocupa e muito!
Onde o nosso Comendador explica que a propalada utilidade de conhecer a existência de um apeadeiro chamado Setil não passa, na realidade, de uma mera aparência

Há, meus senhores, no Concelho do Cartaxo, freguesia do Vale da Pedra, uma pequena aldeia chamada Setil. Em tempos idos, homens carregando pequenas bilhas de barro apregoavam «água fresca», a qual tentavam vender aos passageiros do comboio Lisboa-Porto que ali obrigatoriamente parava, por ser o local de confluência da Linha do Norte com a a Linha de Vendas Novas.
Bons tempos, meu Deus, bons tempos em que a água sabia a barro e em que a Dona Alice Monteiro, também conhecida por Lili Caneças, podia dizer que era uma brasa sem a gente desconfiar. Porque, meus caros amigos, como eu ouvi dizer noutro dia, uma boa parte da responsabilidade pelo facto de os homens velhos ficarem impotentes reside na desgraça de mulheres velhas ficarem feias. Mas adiante...
Eu ainda aprendi que a Linha do Norte começava em Lisboa, passava por Braço de Prata e seguia por Setil, Santarém, Entroncamento, Lamarosa, Alfarelos, Coimbra, Pampilhosa, Aveiro, Espinho, Gaia e Porto. Também aprendi os rios de Moçambique — o Rovuma, o Lúrio, o Pungué, o Zambeze, o Búzi, o Save, o Limpopo e o Incomáti. E aprendi muitas coisas que — verdadeiramente — preferia não ter aprendido porque nunca me serviram para nada!
Eu nunca precisei de saber onde era o rio Pungué e nem conheço ninguém que precisasse. Mas a minha professora, a «Sôrétora», obrigou-me, de ponteiro em punho, a saber na ponta da língua isso e as tribos da Guiné, apesar de nessa altura eu viver nas Avenidas Novas.
Hoje em dia, em que os rapazes e raparigas não sabem ao certo — e sem máquina de calcular — quantos são dois mais dois, aparecem uns saudosistas do ensino antigo. A minha opinião é que vão morrer longe. No ensino antigo, é certo, sabia coisas interessantes como a equivalência do metro cúbico ao ester, à tonelada e ao quilolitro, mas ao mesmo tempo enfiavam-nos cabeça abaixo inutilidades como o ramal de Viseu, que era Santa Comba Dão, Tondela, Viseu.
Aparecem, igualmente, ferozes críticos do ensino antigo afirmando peremptoriamente que o ensino memorizado é uma fraude e que no fundo fica colado com cuspo. A esses digo, igualmente, que vão morrer longe. Porque, meus caros pós-modernos eduqueses, se assim fosse por que raio de milagre eu sabia, até hoje, que o D. Sancho II era chamado ‘O Capelo’ por em criança ter usado um capelo, coisa que ainda agora não sei o que é, porque na altura não memorizámos esse pormenor.
Por isso, devo aqui afirmar publicamente que teria preferido não aprender uma série de coisas inúteis que fui metendo na cabeça ao longo da vida. Pormenores idiotas, cursos de água longínquos, montanhas distantes, dinastias que acabaram e, de um modo geral, discursos do general Eanes.
Há quem diga que o saber não ocupa lugar. Mas eu estou convencido de que ocupa e muito! Eu hoje estou convicto de que nunca aprendi inteiramente física quântica, biologia molecular, tiro aos pratos e cozinha de fusão porque todo o espaço disponível no meu cérebro estava ocupado com a porcaria do rio Pungué e com a estação de Setil.
E, se querem que vos diga, isso irrita-me profundamente. Porque, cada vez que alguém diz Lisboa, eu penso maquinalmente: Setil, Santarém, Entroncamento...

COMENDADOR MARQUES DE CORREIA

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