quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

À mulher de César ...

Excelente editorial do Director do "Público"...

A mulher de César e a importância da confiança em política
José Manuel Fernandes
2009-01-29

Em dias de crise é mais importante do que nunca que os cidadãos confiem nos seus líderes. Essa confiança pode perder-se por erros políticos ou quando surgem dúvidas sobre o comportamento do cidadão. É por isso que Sócrates está a viver a pior crise do seu mandato José Sócrates, como primeiro-ministro e como cidadão, viveu ontem um dia difícil. Mas o pior é que pode não ter sido o mais difícil.Como primeiro-ministro, José Sócrates foi confrontado com a forma equívoca, ou mesmo enganadora, como apresentou um relatório encomendado pelo Governo como sendo um texto da OCDE. Não se saiu nada bem no debate parlamentar e ficou ainda pior no retrato quando as televisões passaram imagens do que tinha dito há apenas dois dias. Deixou uma ideia de pouca seriedade e rigor.Também como primeiro-ministro, recebeu a má notícia de que Bruxelas enviará para Portugal apenas umas migalhas do dinheiro que reservou para apoiar o combate à crise económica nos diferentes países da União. Apenas estarão garantidos, para já, 30 milhões de euros dos 5 mil milhões de euros do pacote europeu. Como cidadão, foi confrontado com revelações, sempre embaraçantes mesmo que totalmente injustas, de que a polícia inglesa coloca o seu nome à cabeça da lista de suspeitos num eventual caso de corrupção durante o processo de licenciamento do Freeport. O caso avoluma-se de dia para dia, e multiplicam-se as dúvidas sobre a forma como esse controverso empreendimento foi aprovado nos últimos dias do Governo de António Guterres.Uma investigação do PÚBLICO, que hoje editamos, mostra que o processo do Freeport foi o que viu o seu derradeiro estudo de impacto ambiental aprovado em menos tempo em mais de mil processos que abarcam uma dúzia de anos. Todos desejam uma administração pública mais célere, mas todos também desconfiam quando essa rapidez surge associada a dúvidas sobre o pagamento de comissões, pois é isso que os ingleses estão a investigar.Como se tudo isto não fosse suficiente, o que deveria ter resultado numa operação de branqueamento da sua actuação, durante a década de 80, como projectista na Câmara da Guarda acabou por resultar noutro embaraço: a maioria socialista do município foi obrigada a distribuir o relatório pelos vereadores da oposição e o seu conteúdo revelou-se muito frágil. Pior: a Supremo Tribunal Administrativo impôs àquele município que permitisse o acesso livre do PÚBLICO aos seus arquivos, algo que tentara impedir.
Todos estes casos podem vir a esfumar-se sem criar danos maiores do que desfocar a atenção do primeiro-ministro naquilo que deve ser a sua prioridade - prioridade que assume -, o combate à crise económica. Ninguém está em condições de o acusar de nada, e por isso goza, enquanto cidadão, da total presunção de inocência.O problema, contudo, é outro, e há muito que é sintetizado no aforismo de que à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria. Nos dias que correm, mais do que ficarmo-nos por uma seriedade então associada à ideia de fidelidade, o que é importante num político é inspirar confiança. Sobretudo nos dias difíceis dos outros, que hoje são quase todos para uma grande parte dos portugueses.Ora a confiança é um bem frágil, algo que decorre da percepção de que quem nos diz para o seguirmos não nos engana porque nunca nos enganou antes no que é realmente substantivo. Falhou uma promessa eleitoral? Para isso todos estão, melhor ou pior, preparados, sobretudo se tiverem a percepção de que quem ocupa o poder está a fazer o melhor que sabe e pode. Usou truques de retórica e manipulou alguns números e estatísticas? Quase se diria que isso faz parte do jogo democrático, pois em condições normais esperar-se-á que a oposição e os diferentes actores da sociedade civil possam contradizê-lo.Muito mais difícil é lidar com problemas que não decorrem apenas dos reveses e dificuldades de um político, mas das dúvidas que rodeiam a actuação do cidadão. Sócrates irá à luta para defender a sua honra e outra coisa não se esperaria. A dúvida é se aquilo que muito dificilmente pode continuar a apresentar como uma manobra dos seus inimigos políticos (por causa do peso que está a assumir a investigação inglesa) lhe permitirá travar essa luta ao mesmo tempo que lidera o país na melhor direcção e consegue que os portugueses confiem suficientemente nele para o reeleger daqui por uns meses.

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