sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Crónica de José Miguel Júdice no "Público"

Obama e outras coisas mais

José Miguel Júdice


A derrota de McCain será uma lição para o fundamentalismo pseudo-religioso e o radicalismo ultraliberalUma velha boutade diz que todos, e não apenas os cidadãos dos EUA, deviam votar nas eleições americanas. Alguma razão existe para essa afirmação. Gostemos ou não que assim seja, a decisão entre Obama ou McCain é capaz de ser - nos aspectos essenciais - mais importante para Portugal do que a opção entre Sócrates e Ferreira Leite.

A minha posição, pública há muito meses, é conhecida. Se pudesse votar, fá-lo-ia sem hesitação em Barack Obama. E o que se foi passando recentemente reforçou claramente a minha convicção. Isso também significa que considero muito importante que ele seja eleito, sem prejuízo de pessoalmente o maverick que se lhe opõe me ser muito simpático e o admirar claramente mais do que ao "meu" candidato.

A vitória de Obama é, em primeiro lugar, um sinal psicológico de reforço do conteúdo essencial da democracia americana. Há 40 anos o apartheid era legal em grande parte do território americano. Um país que é capaz, sem revoluções nem guerras civis, de fazer uma alteração tão profunda da cultura dominante dá-nos um refrescante sinal de modernidade e de regeneração. Nesse sentido, mais uma vez, os EUA dão ao mundo uma lição da força do ideal democrático, da importância da cidadania e da luta pelas liberdades e da capacidade de auto-regeneração.

Depois, a vitória de Obama é um sinal muito forte dos EUA, nomeadamente para as zonas onde a inépcia, o aventureirismo e o pendor imperial, corporizados em George W. Bush, acentuaram problemas em vez de os resolver. Não podemos ser ingénuos. Nada de essencial se alterará magicamente por causa desta eleição. Mas um tempo de abertura e boa vontade, uma janela de oportunidade, se abrirá após 4 de Novembro. Se souberem aproveitar, o mundo poderá voltar a ser um lugar onde seja mais agradável viver.

Em terceiro lugar, a derrota do mais moderado dos republicanos é uma lição para o fundamentalismo pseudo-religioso e o radicalismo ultraliberal que tomou conta do partido do elefante e que destruiu a própria essência da tradição lincolniana, fiel a valores, mas pragmática e moderada em temas sociais. Depois de o Partido Democrata ter aprendido com as derrotas e ter abandonado a dinâmica destrutiva da subordinação a grupos de interesses parciais, chega agora o tempo de os seus opositores fazerem a travessia do deserto que afaste o peso dos extremistas e permita de novo no futuro aspirar a governar.

Para além de tudo isso - que não é pouco - a vitória do candidato democrata e o esperado controlo do Congresso por esse partido permitem evitar o terrível risco da paralisia e da negociação permanente em tempos que vão exigir capacidade de liderança e rapidez de acção. Nesse sentido, a frieza de Obama e o seu elitismo não populista - que chegam às vezes a irritar - parecem ser atributos importantes para os próximos anos. O Governo federal vai poder agir sem álibis e sem riscos exagerados de extremismo ou de abusos: o Partido Democrata voltou gradualmente a ser uma coligação em que sectores conservadores voltaram a ter a importância que foram perdendo, quando o radicalismo dos militantes os afastou até perceberem que assim perderiam a natureza de partido de governo.

Acresce o facto de a gravíssima crise económica que assola os EUA obrigar a medidas que ponderem vectores de justiça social e de intervenção na economia para as quais o actual Partido Republicano não está minimamente apetrechado. Os EUA precisam de reforçar as classes médias, de criar maior justiça fiscal, de renovar o sonho americano e para isso não tenho dúvidas de que nesta conjuntura McCain não é a pessoa certa para a função.

Esta eleição - que acompanhei ao longo de meses com um fascínio que me surpreendeu, desinteressado como estou das eleições em Portugal - fornece muitas lições que devem ser entendidas por todos os que desejam fazer política em Portugal. Entre muitas outras, que seguramente voltarei a abordar no futuro, gostaria de realçar a tendência dos povos para um voto racional em tempos de crise, em tempos em que a política volta a exigir os seus direitos. O marketing, a utilização das pulsões inconscientes, os truques dos spin doctors, tudo isso funciona em tempos de optimismo em alguma medida. Quando os eleitores estão verdadeiramente preocupados e, por isso, verdadeiramente interessados nos combates políticos, pode descobrir-se a racionalidade imanente à vontade geral que, sendo embora as mais das vezes uma ilusão, é afinal a estrutura em que se suporta o sistema democrático.

Duas notas finais: há anos um tal dr. Álvaro Castello-Branco (vereador da Câmara do Porto) insinuou de forma miserável que o Ippar estaria a malbaratar fundos públicos por me estar a pagar muito dinheiro (o que era, aliás, falso) para o representar num litígio causado por comportamentos ilegais da vereação e do presidente Rui Rio, em que os tribunais vezes seguidas deram razão ao meu constituinte. Agora está a beber do veneno que - sem razão - me queria fazer engolir. Espero que esteja tão inocente como eu.

A luta contra o dinheiro clandestino na política é um combate de cidadania e de liberdade. O Orçamento não pode por isso abrir o que custou tanto a fechar. O dinheiro para os partidos é aliás excessivo em tempos de austeridade. Dizem-me que o "indexante de apoios sociais" sobe menos em cada ano do que o salário mínimo que servia de base para atribuir subvenções. Se assim for, louvo o ministro das Finanças, e felicito-me por durante muito tempo ter sozinho lutado por isso. E renovo o apelo que venho fazendo há anos para que os partidos pratiquem o acto de cidadania responsável de devolver o que nos últimos anos receberam acima da actualização anual dos vencimentos dos funcionários públicos, por terem beneficiado muito com o aumento da salário mínimo acima da inflação. Advogado

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