quarta-feira, 15 de outubro de 2008

We will always have Paris

Excelente artigo de opinião de Teresa de Sousa, no Público de hoje...

Trichet provou a idoneidade do BCE, Brown foi o homem do momento e Sarkozy mostrou que pode fazer a diferença

1.Quando resolve agir em conjunto, com visão e com determinação política, a Europa pesa. E de que maneira. É esta, porventura, a primeira lição a tirar desta tremenda crise financeira e dos seus mais recentes desenvolvimentos. Os mercados perceberam-no e as pessoas também. A imprensa francesa dizia, em vários tons, que foi em Paris e não em Washington que se desenrolou a cena mais importante do fim-de-semana que permitiu devolver alguma calma aos mercados. O Times de Londres, sempre desconfiado do que se passa do lado de cá da Mancha, também não hesitava em escrever que a Europa tinha mostrado, com a sua convergência, que passara a ser "muito menos dependente dos Estados Unidos". Foi, de facto, o modelo de intervenção delineado por Londres e adoptado facilmente pelos líderes dos países do euro que acabou por se revelar o mais claro e o mais eficaz para fazer frente ao pânico dos mercados e começar a debelar a crise. "We'll always have Paris", dizia, citado pela Reuters, o economista-chefe do grupo italiano UniCredit, para resumir a ideia de que os líderes europeus conseguiram estar à altura do desafio, roubando a ribalta ao G7 e a Washington. Paul Krugman, o nada inesperado Prémio Nobel da Economia deste ano, começava a sua última crónica no New York Times com a seguinte pergunta: "Gordon Brown, o primeiro-ministro britânico, salvou o sistema financeiro mundial?" A pergunta, retórica, servia-lhe para sublinhar as fragilidades do Plano Paulson e para demonstrar como um pequeno país europeu consegue ter mais impacte do que o gigante norte-americano no que toca a encontrar as respostas mais eficazes para enfrentar a tempestade financeira desencadeada em Wall Street. Ontem, vimos as autoridades de Washington adaptar o seu próprio plano ao modelo europeu, bem como o efeito calmante que essa decisão teve na Bolsa de Nova Iorque. Porque é que a visão e a iniciativa tiveram de vir de Londres e de Paris e não de Washington? Talvez porque, para além do triste fim de George W. Bush, a Europa está em condições de reagir de forma mais pragmática e menos ideológica do que uma Administração que sempre disse que tudo o que é privado é bom e que tudo o que é público é mau. Falta chamar a atenção para a forma como quase toda a imprensa europeia mais séria se regozijou, quase também a uma só voz, com o êxito europeu. Coisa tão rara e, por isso, tão significativa. 2.É interessante lembrar quem foram os "vilões" e quem foram os "heróis" da cimeira de Paris. Num comentário breve nas páginas do Monde, Arnaud Leparmentier resumia as coisas de forma muito simples.Houve três vencedores: Jean-Claude Trichet, Gordon Brown e Nicolas Sarkozy. O primeiro porque provou a idoneidade do Banco Central Europeu, garantindo a liquidez nos mercados e actuando em coordenação com a Reserva Federal e o Banco de Inglaterra para cortar as taxas de juro numa decisão que foi histórica. O euro, que o BCE simboliza, funcionou como uma âncora fundamental de estabilidade, sobretudo para as economias mais frágeis. Sobre Gordon Brown, que os britânicos viam há bem pouco tempo como politicamente moribundo e de cujo eurocepticismo os seus parceiros europeus desconfiavam, foi o homem do momento e, sobre isso, já quase tudo se disse. Pragmaticamente, reagiu como um europeu. Percebeu que a City de Londres depende tanto da Europa como a Europa depende da City de Londres. Quanto ao Presidente francês, provou (e não foi a primeira vez) que o seu voluntarismo, a sua persistência e a sua abertura de espírito podem fazer a diferença. Ontem, o circunspecto Frankfurter Allgemeine Zeitung, normalmente muito pouco simpático em relação à exuberância do Presidente francês, tirava-lhe o chapéu dizendo que, "pouco depois da sua gestão notável do Cáucaso, voltou a tomar os comandos". Soube ultrapassar as suas divergências com Trichet e acalmar o primeiro-ministro espanhol (que não foi convidado para a primeira e fracassada cimeira dos quatro "grandes"). Mas o jornal reservava a parte mais interessante da sua análise para a forma como Sarkozy conseguiu vencer a obstinação da chanceler. "Foi aí que Sarkozy usou o joker Brown contra Berlim, de forma a reintroduzir alguma dinâmica no diálogo franco-alemão." Claro que as coisas são bem mais complicadas do que estes jogos políticos. Mas eles são reveladores da forma como, muitas vezes, as coisas funcionam na UE: chegar ao sítio certo por caminhos complicados. E isto conduz-nos aos "vilões" desta crise. 3.Sobre eles, a lista também não chega a ser muito polémica, embora seja sempre mais difícil enumerá-la sem cometer injustiças.Angela Merkel conquistou, talvez pela primeira vez desde que é chanceler da Alemanha, o direito a figurar à cabeça. O analista do Monde diz que ela reagiu mal à crise, como já toda a gente compreendeu, embora depois tenha corrigido o tiro. A questão é saber porquê. E isso não é tão fácil.Porque tem de enfrentar eleições proximamente e não quis fazer nada que pudesse desagradar aos contribuintes alemães, sempre pouco dispostos a "pagar" pela Europa? Talvez. Mas a justificação parece pobre, porque não estamos propriamente a falar da discussão do orçamento europeu. Estamos a falar da maior crise financeira desde a de 1929 (cujas consequências poucos como os alemães devem ter presente), que põe em causa um determinado modelo de gestão do capitalismo de que a Alemanha sempre foi bastante crítica.Porque as suas relações com Nicolas Sarkozy são bastante más e a chanceler tende sempre a desconfiar das suas iniciativas? Merkel tentou demonstrar o contrário na visita conjunta que ambos fizeram na véspera da cimeira de Paris à terra natal de Charles de Gaulle para inaugurar um memorial ao antigo Presidente francês. Mas a (des)harmonia entre o eixo Paris-Berlim já muito dificilmente pode apenas contar com a História para poder funcionar. Passou há muito o tempo em que a Alemanha via o seu interesse nacional melhor traduzido através do interesse europeu. Desde a reunificação que deixou de se ver e de se comportar como uma nação politicamente limitada pelo seu passado. Essa foi a época em que estava sempre disponível para passar o cheque. Hoje pesa as coisas de outra maneira, como uma nação normal, que quer ver o seu peso político e económico levado devidamente em conta. É essa uma das razões pelas quais se empenhou tanto na reforma institucional. A surpresa é que Merkel tinha devolvido à Alemanha o papel de motor da integração europeia, precisamente porque era capaz de entender os interesses do conjunto. O presidente da Comissão, Durão Barroso, também é apresentado na lista dos perdedores. Por ter andado a reboque de Nicolas Sarkozy, diz alguma imprensa francesa, em vez de revelar a autonomia necessária para desempenhar um papel propulsor. Barroso não tem toda a culpa. Os grandes países da União (sobretudo a França e o Reino Unido, mas também outros) passaram os últimos anos, de reforma em reforma, a tentar reduzir o papel da Comissão Europeia. É praticamente assim desde que Jacques Delors abandonou o lugar.Não se podem agora vir queixar de que ela não exerce suficientemente o seu papel de liderança. Talvez a figura do Presidente do Conselho Europeu prevista no novo tratado pudesse obviar a esta ausência de um centro de gravidade capaz de puxar todos para o mesmo lado. O que esta e outras crises recentes também sublinham é que a sua escolha, se alguma vez vier a acontecer, só fará sentido se recair sobre uma personalidade política muito forte.4.Hoje, em Bruxelas, quando os líderes europeus se reunirem para uma cimeira a 27 que deverá consagrar as suas decisões a 15, o teste é o da solidariedade europeia. Que se medirá na solidariedade em relação aos novos Estados-membros da Europa de Leste, alguns dos quais começam a sentir as extremas dificuldades da crise sem poderem contar com a protecção do euro.E será preciso também começar a tirar as lições disto tudo e perceber que a Europa pode e deve jogar um papel crucial na reforma do sistema financeiro e na necessidade de dar alguma ordem e algum sentido de justiça à globalização. Depois do que aconteceu no domingo, em Paris, a Europa "não voltará a ser a mesma", escrevia Paul Taylor da Reuters. Teve a demonstração da sua própria força. Terá de estar agora à altura da oportunidade que esta crise lhe dá.

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