terça-feira, 14 de outubro de 2008

Este prémio (Nobel) é só para velhos?


Excelente crónica de José Victor Malheiros hoje no Público...
Paul Krugman, 55 anos, conquistou ontem o Nobel de Economia. Foi o mais jovem da colheita deste ano. Apesar de ter como vocação premiar inovações e descobertas, o Nobel está a transformar-se num prémio de carreira e a distinguir pessoas cada vez mais idosas.
Há um ditado famoso sobre a forma mais eficaz de ganhar um Nobel: faça alguma coisa importante e não morra durante os cinquenta anos seguintes. O conselho aparece entre os muitos dados pelo Nobel Peter Doherty (Medicina, 1996) no seu livro The Beginner's Guide to Winning the Nobel Prize, mas pertence há muito ao património comum de aforismos da comunidade científica mundial. Apenas da comunidade científica porque o conselho faz um particular sentido para os prémios Nobel científicos (Medicina, Física, Química, Economia), onde se premeiam "invenções", "descobertas" ou "melhoramentos" que exigem algum tipo de reconhecimento consensual - mas o mesmo não acontece forçosamente nos outros domínios cobertos pelos prémios Nobel.É mais difícil dizer o que é, na literatura, "a obra mais notável de carácter idealista" (nos termos do testamento de Alfred Nobel) e tentar o mesmo exercício para a área da paz e da política mundial é igualmente árduo. Há aliás quem garanta que a melhor maneira de tentar o Nobel da Paz é matar o maior número de pessoas (começar uma guerra parece uma boa escolha) e depois dar sinais de que se está disponível para negociar a paz. Funcionou com Henry Kissinger, que ganhou o Nobel de 1973 durante a Guerra do Vietname, devido aos acordos de Paris (o ministro dos Negócios Estrangeiros vietnamita Le Duc Tho também ganhou o Nobel ex-aequo, mas teve a decência de recusar, por considerar que aquilo que se tinha alcançado no Vietname não se podia chamar "paz"). O Nobel da Paz tem a vocação não apenas de galardoar os que lutam pela paz mas também o objectivo de promover a paz e por isso arrisca-se frequentemente a distinguir personalidades cujo apego à paz é duvidoso (o líder palestiniano Yasser Arafat foi uma dos escolhas mais criticadas) na esperança de que o prémio os exorte a caminhar nesse sentido.Premiá-los ainda vivosSeja como for, a verdade é que o Nobel é geralmente atribuído - em particular nas áreas científicas - a personalidades de idade avançada. A idade média dos premiados deste ano foi 68,2 anos e no ano passado foi 70,5.Este ano, um dos galardoados com o Nobel de Física, o japonês Yoichiro Nambu, entrou directamente para o top ten dos premiados mais idosos, com os seus 87 anos, e no ano passado a escritora britânica Doris Lessing, com 88 anos, também teve direito a entrada na lista dos gerontes.Em certos casos a idade avançada é tanto mais surpreendente quanto as descobertas que justificam o prémio foram feitas décadas antes, muitas vezes quando os galardoados tinham trinta ou quarenta anos (o trabalho de Nambu foi feito nos anos 60).Há porém várias razões que justificam a idade dos premiados. Uma das mais importantes é que o Nobel só pode ser atribuído a pessoas vivas. Até 1974 podia ser entregue a alguém que já tivesse morrido desde que essa pessoa estivesse viva no momento da nomeação - foi o que aconteceu ao poeta sueco Erik Axel Karlfeldt (Literatura, 1931) e ao secretário-geral da ONU Dag Hammarskjöld (Paz, 1961). Desde aquela data, porém, o galardoado tem de estar vivo no momento da atribuição, geralmente em Outubro - ainda que possa morrer antes de chegar a receber a medalha e correspondente cheque, o que acontece numa cerimónia que tem lugar em Dezembro. Esta circunstância também já ocorreu, com o economista americano William Vickrey (Economia, 1996), que teve um ataque cardíaco três dias depois de ter sido anunciado o prémio.Porque é que o facto de se dar apenas o prémio a pessoas vivas faz com que se distingam pessoas mais velhas? Imagine que têm dois candidatos com obras indubitavelmente meritórias que têm 56 e 87 anos. Não teria a tentação de dar o prémio ao mais velho? Afinal, o primeiro ainda vai ter muitas outras oportunidades de o ganhar e o segundo... poderá não ter.Mas há uma outra forte razão para preferir os trabalhos mais antigos - o que significa premiados mais velhos: ter a certeza de que o trabalho escolhido é mesmo importante.À espera do consensoUm prémio com o relevo que tem o Nobel não se pode enganar. É normal haver algum grau de polémica sobre os prémios - discute-se se a descoberta merecia o prémio, se o galardoado é de facto o autor da descoberta e se não terá havido alguém que colaborou e ficou injustamente de fora (uma crítica frequente), se não havia ninguém mais merecedor, etc. Mas, apesar das críticas, o prémio tem de reunir consenso dos especialistas, sob pena de perder o prestígio de que goza.E a passagem do tempo fornece alguma certificação da importância das descobertas. Permite separar os trabalhos que pareciam importantes mas se revelaram uma moda passageira e sem influência marcante dos que abriram novos caminhos ao conhecimento do mundo, ao tratamento de doenças, ao desenvolvimento económico, ao maior bem-estar da humanidade. E permite separar os resultados verdadeiros dos falsos. Há ainda hoje um enorme movimento de contestação do Nobel de Egas Moniz (Medicina, 1949) atribuído ao seu uso da leucotomia pré-frontal no tratamento de psicoses - que foi precursor das lobotomias de má memória - mas há inúmeros casos de contestação da própria autoria dos trabalhos que mereceram o Nobel e mesmo casos em que o prémio distinguiu "descobertas" que se vieram a revelar falsas interpretações dos resultados, como a do dinamarquês Johannes Fibiger (Medicina, 1926) que pensou ter descoberto que um tipo de parasitas era a causa do cancro. (Fibiger fez ao longo da sua carreira outros trabalhos de grande valor científico)."Não é surpreendente que o Nobel seja atribuído a pessoas de idade avançada porque ele funciona de facto como um prémio de carreira", diz Maria Eduarda Gonçalves, jurista e investigadora do ISCTE, que se tem dedicado ao estudo das relações entre a ciência e a sociedade. "Por outro lado, o recuo do tempo é fundamental para avaliar a real importância do trabalho científico. Principalmente hoje em dia, devido à evolução do conceito de 'verdade científica'. Antigamente havia uma grande confiança na 'certeza' científica e hoje - devido em parte à atenção que é dada ao estudo de processos naturais de grande complexidade -, vivemos num ambiente de maior incerteza mesmo do ponto de vista científico. Hoje em dia o que se considera 'prova científica' é um consenso forte entre cientistas e esses consensos demoram a estabelecer-se".O grande filtro do tempoA esperança dos elementos que formam as comissões que escolhem os premiados é que o tempo que medeia entre descoberta e distinção permita filtrar todo o joio: garantir que a descoberta é real; dar tempo a que se estabeleça a sua verdadeira autoria; permitir que ela seja replicada e, se possível, mesmo aplicada noutros trabalhos para se poder comprovar a sua eficácia.Num mundo em que a ciência recorre cada vez mais ao trabalho em equipa, onde todos os investigadores têm de subir aos ombros dos gigantes que fizeram o trabalho anterior, onde cada experiência envolve sempre pessoas de diferentes especialidades, o problema da atribuição da autoria tornou-se especialmente complicado. Como se considera que o trabalho desta pessoa foi relevante para esta descoberta e que o daquela colaboradora não foi? As regras dos Nobel tornam as coisas ainda mais difíceis ao limitar a três o número máximo de galardoados por cada prémio, mas a Fundação Nobel tem contornado recentemente esta dificuldade fazendo comunicados onde, de forma tão detalhada quanto possível, tenta reconhecer todas as contribuições para o trabalho distinguido, referindo trabalhos anteriores, colaboradores próximos e o papel relevante de orientadores e colegas.Por tudo isto, o Nobel é um prémio de reconhecimento e consagração e - mesmo quando premeia um trabalho específico, uma "descoberta" - acaba sempre por ser um prémio de carreira. A excepção é o Nobel da Paz, que é concedido frequentemente como incentivo para prosseguir um caminho já encetado, para que os seus recipientes possam fazer mais e melhor - nem sempre com os melhores resultados.Há ainda outra razão menor para dar o prémio a pessoas mais velhas: o menor risco de que os premiados, uma vez ungidos pela embriaguez da fama, se lancem em empreendimentos embaraçosos, como fazer uma máquina de moto perpétuo ou encontrar a pedra filosofal (ainda que haja um maior risco de que se lancem em busca do elixir da juventude).Há quem diga também que o critério releva de uma certa piedade: os galardoados queixam-se de que é tão difícil fazer algum trabalho sério depois de receber um Nobel, tantas são as solicitações de que se é objecto, que é mais misericordioso condenar a essa improdutividade forçada uma pessoa de 80 anos que uma de 40.Mas não é por premiar os mais velhos que o Nobel não funciona como estímulo."O Nobel não é um estímulo para o trabalho científico do próprio galardoado, porque em geral chega quando este já não está numa fase muito produtiva da sua carreira", diz o físico Carlos Fiolhais, do Departamento de Física da Universidade de Coimbra. "Mas tem um valor simbólico muito forte e é um estímulo para a área científica à qual é atribuído. As centenas ou milhares de jovens que trabalham numa área que ganhou um Nobel sentem que o prémio também foi para eles. Isso aconteceu comigo quando o físico Walter Kohn ganhou o Nobel de Química, em 1998, porque eu trabalhava na mesma área - a teoria dos funcionais da densidade. Tenho um antigo aluno que trabalha em química, na proteína verde fluorescente que ganhou o Nobel deste ano, e telefonei-lhe logo para lhe dar os parabéns..."O fim da física?Mas não se pense que o Nobel não premiou já jovens. No top ten dos jovens vemos um laureado com 25 anos, Lawrence Bragg, o recordista, que ganhou o prémio em conjunto com o seu pai, de 53 anos (Física, 1915), e muitos outros na casa dos trinta. Curiosamente, os cinco mais jovens são todos da física, mas também há dois premiados da Paz com 33 anos: Betty Williams (1976) e Rigoberta Menchú (1992).A questão é que os jovens são, cada vez mais, a excepção. Os cinco físicos jovens que estão no topo foram todos premiados há mais de cinquenta anos.No ano 2000 foi publicado um pequeno estudo sobre a idade dos premiados com os Nobel de Física e Literatura que mostrava a evolução nos cem anos anteriores. A idade média dos dois grupos estava a subir de forma clara e, apesar de haver uma idade média mais alta nos laureados da literatura (63 contra 51 anos), a estatística apontava que a relação se iria inverter: ou seja, o crescimento na idade dos físicos premiados era mais acelerado que nos escritores. Para o autor do estudo, uma das razões está, simplesmente, na maior esperança de vida da população, mas há outra razão: o facto de a física estar a perder vitalidade por as grandes verdades já terem sido todas reveladas e por estarmos em período de degenerescência das ideias - "a mesma degenerescência que os grandes exploradores sentem quando os territórios que exploraram começam a ser invadidos por turistas", para usar as palavras do Nobel Richard Feynman (Física, 1965).A consequência desse vazio de ideias? Para encontrar as grandes descobertas seria preciso procurar mais e mais longe no tempo. Daí os velhos, em cuja faixa etária se poderiam encontrar, de acordo com esta teoria, os últimos grandes inovadores e descobridores.As mulheresMais sério do que o enviesamento para os velhos parece ser o sexismo do Nobel - que, estatisticamente, vai muito para além da predominância de género existente nas áreas abrangidas. Dos 809 laureados, apenas 35 são mulheres (há 754 homens e 20 organizações) e são conhecidos casos de flagrante injustiça, apenas explicável pela discriminação de género. Carlos Fiolhais cita "Jocelyn Bell Burner, agora à frente do Institute of Physics britânico, que não partilhou o prémio de Física dado em 1974 ao seu supervisor Antony Hewish pela descoberta que ela fez dos pulsares, e Lise Meitner, que devia ter recebido o prémio de química com Otto Hahn, em 1944, pela teoria da cisão do urânio". Outra injustiçada famosa é Rosalind Franklin, que devia ter recebido o Nobel em 1962, com Watson e Crick - mas que morreu antes disso.

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